Amigos, trabalhando hoje na 2ª edição do meu
livro de Provas no Processo do Trabalho, separei para vocês um fragmento no
qual explico o significado do registro de ponto por exceção, defendendo, na
sequência, a sua inconstitucionalidade. Espero que seja útil. Segue abaixo:
Vamos falar hoje sobre o tema da permissão
legislativa da utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de
trabalho, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo
coletivo de trabalho (art. 74, § 4º da CLT). Aqui, antes de tudo, devemos
definir o que é o registro de ponto por exceção, para dizer que ele é um
instrumento mediante o qual se presume o regular cumprimento da jornada básica
de trabalho, ficando a cargo do empregado anotar no documento apenas as
excepcionalidades ocorridas, tais como as ausências, os atrasos, as horas
extras acaso laboradas e eventuais intervalos intrajornada não respeitados.
Parece-nos, indo direto ao epicentro do
debate sem maiores volteios, que a aludida disposição, prevista no § 4º do art.
74 da CLT, é manifestamente inconstitucional, uma vez que menospreza, a mais
não poder, o postulado constitucional da razoabilidade, que deve reger a
elaboração de qualquer disposição normativa. Para melhor sustentarmos o nosso
ponto vista, cumpriremos nos próximos parágrafos a tarefa de diferenciar os
postulados constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, que nem
sempre são adequadamente compreendidos pelos juristas.
Na nossa compreensão, os princípios em
questão, em que pese derivem no Direito brasileiro da mesma fonte
constitucional incorporada, que é o princípio da legalidade (vide, a propósito,
o artigo 5º, II, § 2º da CRFB), merecem diferenciação clara o suficiente para
que sejam evitados desalinhos inapropriados e indesejáveis.
Assim, consoante o nosso ponto de vista, o
princípio da proporcionalidade (verhältnismäßigkeit),
oriundo do Direito alemão, diz respeito ao abalançamento de direitos
fundamentais que acaso estejam em rota de colisão, almejando responder, na
dimensão aplicativa, até que ponto um pode ser tutelado sem que interfira
desmedidamente na fruição do outro.
Já o princípio da razoabilidade (reasonableness), de origem
anglo-saxônica, que melhor seria denominado como princípio da ‘racionalidade’ (rationality) para que o seu conteúdo
detivesse compreensão mais intuitiva, diz respeito à plausibilidade das regras,
não podendo ser consideradas constitucionais aquelas que sejam manifestamente
irracionais.
Assim, laborando em exemplos mais agudos e
cerebrinos, contrariariam o princípio da legalidade, enxergado pela sua
dimensão da razoabilidade, disposições normativas que, v.g., desejassem revogar
a lei da gravidade ou que buscassem estabelecer que o planeta Terra seria
plano.
Como exemplos mais palpáveis, seriam inconstitucionais,
por manifesta irrazoabilidade ou irracionalidade, leis que exigissem uma altura
mínima para alguém exercer o cargo de escrivão de polícia (diferentemente, por
exemplo, de um agente que fosse atuar diretamente no front policial) ou que criasse adicional de férias para servidores
públicos inativos. Estes últimos dois exemplos, aliás, já foram enfrentados
pelo Supremo Tribunal Federal, respectivamente, no RE 150.455.2-MS e na ADI
1.158-AM.
Devidamente diferenciados os postulados
constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, é chegado o momento de
demonstrarmos, concretamente, por qual motivo a regra do ponto por exceção,
prevista no multicitado § 4º do artigo 74 da CLT, seria inconstitucional. A
questão é simples, não demandando comentários demasiadamente alongados. O fato
é que diante da sua incontornável irracionalidade ou até mesmo do seu cinismo,
a disposição normativa em comento agride letalmente o postulado da
razoabilidade.
Para melhor demonstrarmos no âmbito
constitucional o que afirmamos, faz-se paradoxalmente necessário que
mergulhemos em uma disposição infraconstitucional, que é o artigo 11, III, ‘c’
da Lei Complementar 95/1998, diploma este que dispõe sobre a elaboração, a
redação, a alteração e a consolidação das leis, conforme determina o parágrafo
único do art. 59 da Constituição.
O fato é que segundo o preceito invocado
(art. 11, III, ‘c’ da LC 95/1998), as disposições normativas serão redigidas
com clareza, precisão e ordem lógica, sendo certo que esta última, a ordem
lógica, demandará, para a sua obtenção, entre outras exigências, que sejam
expressados por meio dos parágrafos legislativos apenas os aspectos
complementares à norma geral enunciada no caput
e as eventuais exceções à regra por este estabelecida, sendo certo, ademais,
embora o preceito não o dite expressamente, que entre os variados parágrafos
deverá existir uma relação de coerência e de integridade.
Perceba-se: as leis devem ser redigidas com
lógica e, para que haja lógica, o parágrafo de um artigo deverá, primeiramente,
tratar dos aspectos complementares à norma enunciada no seu caput, podendo, no máximo, excepcionar
um ou outro aspecto da regra geral estabelecida na cabeça do artigo no qual
está inserido, não lhe sendo lícito jamais esvaziar por completo o sentido da
regra geral, tampouco carregar consigo uma incoerência gritante entre os
diversos parágrafos que juntos compõem o preceito, sob pena de em assim não se
comportando, tornar-se manifestamente inconstitucional, tendo em conta a sua
ilogicidade, a sua irracionalidade e, por corolário, o seu completo menosprezo
ao postulado da razoabilidade que deve orientar a elaboração de toda e qualquer
disposição normativa.
Pois bem. Quanto cotejada a regra geral do caput do artigo 74 da CLT e,
principalmente, o disposto no seu § 2º, com a disposição do seu § 4º, a
ilogicidade deste último regramento advindo da malfadada lei de liberdade
econômica (§ 4º do art. 74 da CLT, com redação da Lei nº 13.874/2019) ressoa
hialina, uma vez que, à toda evidência, não é ‘razoável’ que a última
disposição de um artigo, no caso o § 4º do art. 74 da CLT, transporte consigo
uma contradição insanável com os fragmentos anteriores do preceito legislativo
no qual está inserido.
Ora, como pode uma disposição legal
prelecionar que o horário de trabalho será anotado em registro de empregados,
sendo obrigatória para os estabelecimentos com mais de 20 (vinte) trabalhadores
a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou
eletrônico, para logo depois dizer, sem qualquer constrangimento, que fica
permitida a utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de
trabalho? Tudo isso, pior ainda, até mesmo mediante acordo individual escrito
em um contrato cuja nótula característica é justamente a subordinação de uma
parte à outra.
Não é difícil intuir, isto posto, que a
teleologia que está por trás de tão vexatória disposição é o propósito evidente
de dificultar a comprovação em juízo, por parte dos trabalhadores, das horas
extras e respectivos efeitos circulares expansionistas a que tenham direito,
subtraindo-lhes, pois, o direito fundamental de acesso substancial (e não
meramente formal) à jurisdição, que é prometido pelo artigo 5º, XXXV da CRFB.
O raciocínio que está por trás desta prática
reprovável, evidentemente, é o de inviabilizar no foro a incidência da regra de
distribuição dinâmica do ônus da prova construída há tempos no item I da súmula
nº 338 do TST, fazendo-o, o que é ainda mais grave, dentro de um contexto
jurídico que prima pela inibição de sobrejornadas excessivas, prática esta que
é essencial para a diminuição dos riscos inerentes ao trabalho (art. 7º, XXII
da CRF) e a promoção da saúde, vista como direito de todos e dever do Estado,
garantida mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco
de doença e de outros agravos (art. 196 da CRFB) .
Tal desiderato, diga-se de passagem, é tão
cristalino, que certa parte da doutrina aparentemente simpática à adoção do
regime de ponto por exceção (a qual respeitamos porém urbanamente divergimos)
chega a vaticinar, desinibidamente, que “é
lícito supor que grande parcela dos empregadores passe a adotar o sistema do
controle de ponto por exceção, uma vez que judicializada a questão, o ônus da
prova das horas extraordinárias passa a ser do trabalhador” (SILVA, Bruno
Freire e; BERNARDES, Felipe. Controle de
jornada de trabalho: registro de ponto por exceção e a jurisprudência do
Tribunal Superior do Trabalho. Revista do TST. São Paulo, vol. 86, nº 1,
jan/mar 2020). Eis aí o inescondível propósito. Mais claro, impossível.
De tudo o quanto asseverado, concluímos pela
inconstitucionalidade do § 4º do art. 74 da CLT, em (des)virtude de ofensa aos
seguintes preceitos constitucionais: a) artigos 5º, II (razoabilidade da lei) e
XXXV (inafastabilidade substancial da jurisdição); b) 7º, XXII (redução dos
riscos inerentes ao trabalho); c) 196 (saúde como um direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à
redução do risco de doença e de outros agravos).
Logo, o empregador que em
tendo adotado por sua conta e risco, mesmo diante da sua flagrante
inconstitucionalidade, o regime de ponto por exceção, não poderá argumentar em
juízo sobre um suposto motivo ‘justificado’
para deixar de trazer aos autos os controles de jornada, de modo que a
distribuição dinâmica do ônus da prova incidirá à espécie, forte na dicção do
item I da S. nº 338 do TST, que remanesce intacta nos tempos atuais.
Prof. João Humberto Cesário (#ProfJHC)
* Em caso de citação, indiquem a fonte,
combinado?